A cor poderia ser apenas um ton, mas lhe deram muito mais que isso, lhe deram força, formas, voz, vida; e se alguém defender que também lhe deram morte não será uma discussão simples e vazia. A cor realmente poderia ser apenas um encanto aos olhos em sua infinita variedade e, mesmo sem deixar de ser, ganhou conotações conceitualmente diversas para os mais variados propósitos.
O advento da escravidão africana produziu uma relação de caráter desprezível de pessoas brancas para com pessoas negras, racialmente, falando, pois se não bastasse a barbárie praticada em todo o processo que desembocava na chegada dos negros aprisionados ao Brasil, suas vidas, dali pra frente, deixavam de lhes pertencer. E pelos séculos que essa realidade perdurou, a cor da pele dessas pessoas reduzidas a uma nova espécie, assumiria a marca indelével da parede invisível que separaria essas pessoas, em nome do que todos os tipos de crimes seriam permitidos contra elas, como se humanos não fossem.
Hoje muitos anos após o fim daquele processo bárbaro, praticado por quem se auto intitulava pessoas do bem, cristãos, inclusive, ainda sobra quem se mantenha com os mesmos sentimentos em relação a esse crime contra a humanidade. Esta realidade também é fruto da forma abjeta como o país pôs fim àquele processo criminoso, o que não justifica o comportamento de quem, estupidamente, insiste em se atribuir qualquer superioridade. Mas a história mostra que a cor do escravizado africano ganhou um caráter particular da aversão "branca", até porque, outras escravidões mundo afora, não africanas, não apontam para sequelas semelhantes como uma mácula tão desafiadora.
O Brasil, como outros países também, todos abençoados pela Santa Igreja, indisfarçavelmente, instituiu a política mais cruel que a mente humana pode imaginar, contra o negro escravizado. Mas como se isso fosse pouco, esse crime contra a humanidade seria irreparável em sua inimaginável longevidade, até porque, mesmo com o fim desse processo ignominioso, muitos de seus autores e seus descendentes parecem continuamente convictos de que, não apenas não fizeram nada de errado, como inclinados a retomarem o curso da escravidão se a situação se lhes apresentasse oportuna.
Uma olhada para trás, tão para trás que milhares de pessoas já não enxergam, ou se libertaram, nos separa da ESCRAVIDÃO abjeta, mas nos alerta para o que subsiste dela dentro de nós, de nós não apenas escondidos em pele branca, pois a política de negação à cor foi tão forte e implacável, que não raro se percebe negros negando-se à sua origem. A escravidão matou muito mais que pessoas, ela instituiu uma condenação atemporal, com força de irreparável, aos seus descendentes, isso porque o branco escravocrata nunca deixou de o ser.
A ESCRAVIDÃO não foi um crime qualquer, ela foi um “CRIME CONTRA DEUS”, mas para a pessoa que não tem pudor em maltratar, humilhar, ferir e matar outra pessoa sem que esta sequer lhe provoque a fúria irracional na qual ouse se amparar, essa pessoa não tem Deus senão como uma palavra ou instrumento para uso oportuno. A verdade é que o fim da escravidão, de pronto, só libertou o negro do pelourinho, pois não libertou seus carrascos senhores do ressentimento de desumanidade por eles construído como a parede invisível que os cercava e separava, dolorosamente, quiçá, por muitas vidas.